Crónica de Jorge C Ferreira
Carnaval
Máscaras, caretas, carantonhas, dissimulações, fingimentos, fantochadas, fantasias para um dia. Matrafonas, fantoches e maltrapilhos. As cegadas. Há quem diga que por um dia conseguiu ser o que queria. Há quem mude de sexo, há quem mude de feitio, há quem mude de vida e de sabor. Há quem prove o nunca provado. Há quem goste e quem não goste. É como tudo neste mundo sem lei.
As bisnagas e uma garrafinha de mau cheiro. A festa agendada desde sempre e que parece surpresa. As partidas, pensadas a rigor. O enterro do Entrudo. A Quarta-Feira de Cinzas. Rituais que já não cumpro. Já cumpri. Saía de casa no sábado de Carnaval e regressava depois da cerimónia do enterro terminada. Os “assaltos”, uma bebida especial feita na banheira, as casas num alvoroço. Os bailes e os foliões. Um gira-discos a debitar as músicas da época. O demasiado barulho.
Alguns que vão dançar de smoking e perfumados para um lugar especial. O espumante. Os confettis e as serpentinas. A orquestra e a música apropriada. Os comboios e o samba mal sambado. Chovia lá fora. Os bengaleiros cheios de agasalhos e guarda-chuvas. Os casacos de peles das senhoras, os sobretudos dos cavalheiros. Outro modo de comemorar. Mais selecto, dizem alguns. Há quem diga que tiradas as farpelas é tudo igual. “Somos todos feitos da mesma massa.”
Enamoraram-se num baile de Carnaval. Pensaram que seria mais uma brincadeira. Dizem que não foi. Foi coisa que pegou. Quando ele se despiu da roupa de mulher e ela atirou fora a roupa de homem que trazia vestida e limpou o falso bigode, ainda se gostaram mais. Já lá vão muitos anos. Ainda hoje se riem das figuras que fizeram. Mas agradecem às máscaras da festa que os uniu. Máscaras que ainda guardam numa arca perdida no tempo.
Pessoas houve que se descobriram naquele dia. Viram que era assim que se gostavam de ver. Chegaram a casa e viram-se de novo ao espelho e gostaram de novo o que viram. A partir daí decidiram iniciar um caminho. Já conheciam a tendência dos seus desejos. Mas sabiam que aquele caminho era difícil. Aqueles anos eram anos de chumbo. Anos cinzentos. Foi tudo muito sofrido até saírem do armário.
Tive um amigo que nunca se mascarava. Vestia-se de si e assim saía de casa. Quando lhe perguntavam de que vinha mascarado, dizia rápido: de mim e olhem que não é fácil. Sabem quantos, no dia-a-dia não conseguem ser eles e andam sempre vestidos de um personagem que, por vezes, não sabem encarnar? Esses, quando chegam a casa, vêem-se ao espelho e detestam-se. Rasgam as vestes e adormecem nus e sós. Janelas, persianas, cortinados, tudo fechado. É na negra noite que se afundam.
Está a passar o enterro do Carnaval. As carpideiras acompanham, choram em gritos de dor fingida, para tal foram contratadas. Um retardatário da folia, ainda mascarado, tira a cartola em sinal de respeito enquanto chora copiosamente. Segue-se um cortejo vestido de negro. Começa a chover de novo.
As escolas de samba, mais uma vez, não saíram à rua.
«Tu e o teu Carnaval! Que raio de coisas misturaste.»
Fala de Isaurinda.
«O Carnaval é assim. Um faz de conta que nos diverte.»
Respondo.
«Pois, pois, mas tu gozaste pouco o Carnaval! Eu topo-te.»
De novo Isaurinda e vai, com um piscar de olho.
Jorge C Ferreira Fevereiro/2024(426)
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O Carnaval, um divertimento para muitos, como tão bem descreve. Tempo de folia, em tempo cinzento, tantos aproveitavam para o tornar colorido e se disfarçavam de diferentes maneiras. Aproveitavam para “sair do armário”. Fez-me voltar atrás no tempo, meu amigo e gostei de lembrar como era bom dançar. Eu gostava tanto de dançar. Sempre em casa de amigos. Mas foi bom, lembro-os com saudade. E a sua mãe também, não se importava que lhe riscassem o chão, da sala enorme da sua casa. Adorei a sua Crónica, meu amigo, sempre maravilhosa a sua escrita. Grata, muito. Abraço imenso.
Obrigado Maria Luiza. Sim, dançar é deixar o corpo viver a música. Há muitos carnavais. Conheço os de que fala. A minha imensa gratidão. Abraço grande.
Gostei desta crónica. No carnaval nada se leva a mal. As máscaras, os disfarces. Ha quem se disfarce só nestes dias e quem ande sempre disfarçaddo.
Dias e dias de preparação de carros alegóricos, rainhas e reis, samba, dança ,muito ritmo. A chuva a fazer a partida e tudo fica em suspenso.
Viajo no tempo e recordo o carnaval da minha juventude. Baile nas colectividades, sem corsos nem desfiles. Sem fatos de gala nem ostentação. Muitos disfarces, muita música, muita dança, muita alegria , muita animação. O amor andava no ar. O Carnaval na aldeia. Outros tempos.
Obrigada Amigo por esta crónica tão brilhante e tão real.
Um abraço.
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Obrigado Eulália. Como bem descreve os vários carnavais. Um texto que me agradou. A minha imensa gratidão. Abraço
O Carnaval é o divertimento que consigo acarreta , é uma festa que não se pode perder. Extravasam- se sentimentos , vive- se outras personalidades, encarnam- se outras figuras que se gostaria de ser mas sem coragem para assumir, ou simplesmente para satirizar , mas no Carnaval , ” ninguém leva a mal” e a folia é o ambiente que se vive em pleno nesta festa pagã. E há mesmo que se aproveitar em pleno porque se segue a Quaresma que é aquele período de privação dos prazeres terrenos, segundo as orientações de uma religião que encarnámos .
Então que se arranje a melhor máscara e que se vá para a rua cantar, saltar, dançar!
E viva a folia !
Obrigado Lénea. A festa, que muitas vezes tem tristeza dentro. Sim vamos para a rua cantar. Bom texto. Abraço grande
Gostei da tua crónica Poeta Jorge C Ferreira! Parabéns! Infelizmente estamos a viver diariamente um autêntico Carnaval!
Obrigado Claudina. E que Carnaval. Coragem. Muito grato. Abraço grande
Um variadíssimo Carnaval, é este escrito por Jorge C Ferreira.
Tem retratos: físicos, morais, afectivos, de intimidades mal assumidas, de tristezas e alegrias. Enfim É um retrato profundo da condição humana, ou o que dela fazemos e somos capazes de assumir.
Um texto que nos expõe como a verdade de um ser Humano integral
Gostei
Obrigado Maria Tavares Alves. Porque os carnavais são muitos e variados. Há muitos disfarces. A minha gratidão pelo seu comentário muito assertivo.
Olá Jorge!
Diverti-me com o seu Carnaval, descrito tim-tim por tim-tim.
Confesso que já não brinco ao Carnaval há uma eternidade. Não sinto essa necessidade.
O importante é que a malta se divirta, descomprima, SATIRIZE. O melhor do Carnaval, para mim, é a subversão e a criatividade.
Gostei da alusão à saída do armário.
Abração
Obrigado Fernanda. Já somos dois que ignoramos a data. Subversivo ainda me considero. A minha gratidão pela sua presença e opinião. Abraço grande